Lembranças de domingo

Não lembro muito bem de quando nos conhecemos, você insiste em dizer que foi no segundo ano da pós-graduação mas eu sei que te quis desde o primeiro. Talvez sem saber direito, talvez sem nem entender, talvez entendendo e sabendo demais. Só sei que, sem nenhum acontecimento especial, como começa a maioria dos relacionamentos duradouros - se eu soubesse que estaria falando dessa lembrança hoje, teria me vestido melhor naquele dia -, nos tornamos amigas. (Éramos muito diferentes nessa época, né? Engraçado pensar nisso porque, depois de tanta intimidade, nos tornamos quase iguais.)

Você me sorria aquele sorriso de moça recatada, de família, e tudo que me restava era cair no deleite da sua inocência, que só eu aproveitava porque te considerava minha, toda minha. E foi assim que o ano passou pra nós: ambas presas em meias-palavras, pois nosso silêncio era o suficiente para emoldurar nossa confiança uma na outra. E eu reparava todos os dias no seu cabelo escorrido na testa, no seu queixo abaixado pra se esconder do mundo, nos seus olhinhos espremidos por trás das bochechas gorduchas. (E esse reparar suave, essa atenção nos detalhes, não é justamente o significado de paixão?)

E não pense que eu não percebia que você me enxergava também. Me enxergava inteira, com meus defeitos de apaixonada e minhas qualidades de amiga. Do seu jeito delicado, que eu não compreendia direito muitas vezes, me amava aos pouquinhos: distribuía o carinho em doses homeopáticas pra eu me viciar nele sem perceber. (A gente pode chamar de vício aquilo que nos faz bem?)

Meu único medo era que todo esse sentimento que eu vi crescendo não fosse recíproco. Hesitei demais antes de tomar uma atitude, porque queria manter sua amizade intacta, mas a resposta positiva veio logo antes do meu exaspero completo. Você não me decepcionou naquele dia: estávamos no cinema - coisa de casal clichê mesmo, porque a vida real não segue roteiro de filme romântico - quando  nossas mãos se tocaram e eu me inclinei pra te beijar. Meio desajeitada, receosa, preocupada em ver se não tinha ninguém olhando, você correspondeu. (É claro que eu devia ter percebido ali os primeiros sinais de desmoronamento, mas que conto eu teria se não fosse tão ingênua?)

Assim começou nossa história tímida de amor, tão reservada quanto você. Cheia dos encontros escondidos, dos bilhetinhos assinados só com iniciais, dos presentes sem remetentes. Éramos adolescente aos trinta e a vida estava só começando. (Imagine a minha surpresa, então, depois de meses construindo segredos do seu lado, ao descobrir que você era mulher casada.)

Melhor se eu não tivesse descoberto nada, viu? Melhor se eu não tivesse planejado uma surpresa pro Dia dos Namorados e não tivesse aparecido na porta da sua casa trazendo flores. Melhor ainda se você não tivesse aberto a porta e ficado mortificada em me ver, enquanto um homem perguntava quem era te chamando de amor. Melhor se você não tivesse me mandado embora nervosa, às pressas, falando que me explicaria tudo depois. (Melhor se eu fosse iludida e não tivesse entendido imediatamente tudo o que estava acontecendo.)

Você não mentiu, pelo menos sobre uma coisa: me ligou realmente depois para explicar o que tinha acontecido. E ligou mais de uma vez, até enfim entender que eu não atenderia. Foi atrás de mim no curso que fazíamos juntas, mas suas justificativas eram tão repulsivas quanto seu olhar débil que um dia eu tinha achado profundo. Sua delicadeza com as palavras tinha cheiro de falsidade e, dentro da minha raiva, tudo o que eu queria era distância de você e dos sentimentos controversos que você aflorava em mim. Por fim, mudei de turma. Não demorou muito até que você desistisse das tentativas vãs: guardou as desculpas para qualquer que fosse o alguém que se importaria com elas, mas esse alguém não era eu. 

(E hoje eu lembro disso com um arrepio na espinha; me dá um pavor terrível de saber que ainda posso te encontrar pela rua.)

Postagens mais visitadas