De ninguém para ninguém


Querido H., 

Isto não é uma carta, porque cartas pressupõem autores e a autora dessa não existe mais. Fui vítima do pior tipo de assassinato: aquele em que nenhum dos envolvidos chega de fato a morrer. Mas, tendo em vista que foi você o assassino, posso ignorar as minúcias dos acontecimentos do passado, não é? 

Eis que hoje estava lendo o jornal e me deparei com uma nota discreta: era o anúncio do seu casamento. Confesso ter sido pega desprevenida; não sabia que você um dia seria capaz de dividir sua vida com outra pessoa da maneira que dividiu comigo, ou pelo menos esperava que não fosse tão rápido. Porém, você ignorou meus desejos, não foi? Como fez tantas outras vezes, repetidamente achando que meus pedidos macios eram caprichos superficiais e que cabia a você, e somente a você, a escolha de realizá-los (e, assim, com essa segurança experiente, me convenceu do mesmo).

Minha vida agora depende do amor que você me roubou para, como eu mesma vi hoje, entregar a outra. O amor que eu fiz crescer por entre as rachaduras do cimento da rua da sua casa. O amor que eu fiz brotar do chão até a janela do seu quarto. O amor que eu fiz vibrar por entre as cordas do violão que você tocava. O amor que eu te dei de tão bom grado e você usou pra regar as plantas do seu quintal.

Mas não falemos através de metáforas, porque é tarde demais pra colocar poesia em nossa relação. Você nunca entendeu a literatura que exalava de mim feito perfume, é verdade, e eu nunca entendi como você pôde acreditar, mesmo que por um momento, que ofendia ao me chamar de sonhadora. Besteira, querido, besteira. Felizes são os românticos, que se iludem sem medo de se ferir. Se a queda é maior para os que têm esperança, o vôo também o é. 

De qualquer forma, te agradeço pelos anos de sofrimento, que, de uma maneira ou de outra, me fortaleceram muito. E, claro, te parabenizo pelo casamento. Espero que você encontre nela o que tão claramente não encontrou em mim.

Adeus, 
F.

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