Sobre ser trocada e outras drogas


Lembro bem do gosto do vento enquanto eu corria pra sua casa aquele dia. Lembro que algumas folhas caíam na minha cabeça e eu me irritava, porque elas terminavam bagunçando o cabelo que eu tinha feito só pra você desfazer. Lembro do peso da minha chave no bolso, que fazia um barulho irritante ao atritar com o chaveiro. Mas, acima de tudo, lembro da vontade de te ver, do desejo imenso de te abraçar e dizer que a gente não precisava mais esperar permissão de ninguém, que eu tinha movido mundos por você e que a gente daria certo. 

Pensei em você durante todos os 3km que separavam o ponto de ônibus da sua casa. Fiz planos intermináveis: nem tinha te visto ainda e já nos imaginava dividindo o mesmo guarda-chuva num dia frio, andando de mãos dadas como se fôssemos só eu e você contra o mundo. Você sorriria pra mim e a gente terminaria assim: unidos por uma conexão que os outros nem ousariam entender, mas invejariam de qualquer forma.

Meu estômago rodava com aquela ansiedade gostosa quando toquei a campainha da sua porta. Você não respondeu de imediato; foi quando me ocorreu que talvez você não estivesse em casa e que eu teria que ficar esperando você voltar, agonizando com meus sentimentos por mais algum tempo. Mas não, sua mãe veio me atender logo em seguida, com aquele misto de surpresa e felicidade (será que era felicidade mesmo?) quando me viu. Me chamou de querida, disse que não esperava minha visita e insistiu pra eu esperar na sala enquanto ela ia te chamar. Recusei. Queria ver sua expressão com a minha chegada súbita. Afinal, já fazia quanto tempo que eu não te via? Dois, três meses? E, se nossas promessas de saudade fossem verdadeiras (e eu juro que, pelo menos da minha parte, eram… são), nosso reencontro tomaria proporções dignas de um romance de cavalaria. 
Sua mãe me seguiu aflita enquanto eu percorri o caminho pra sua porta, semiaberta. E eu sorria, sorria muito, quando me aproximei com cuidado e terminei de escancará-la, pra que eu pudesse te ver enfim. Mas meus olhos não recaíram imediatamente em você. E como poderiam, se havia uma moça (bem parecida comigo, aliás) deitada na cama do seu lado? Confesso que não entendi imediatamente. Enxerguei mil explicações pra o que tava acontecendo, mas só quando você se abriu num sorriso sem graça percebi que nenhuma fazia sentido. 

E foi aí que você me negou. Negou porque não me queria, queria ela. Negou porque não me amava mais (refletindo hoje, não sei se o que você sentia antes era amor mesmo), porque o tempo tinha passado e levado tudo o que eu significava pra você. Negou porque me trocou e esqueceu de avisar. E eu, criança obediente, não gritei com você porque nunca fui muito boa com escândalos, você sabe. Por isso que eu escrevo agora: tô guardando tudo o que eu queria te dizer faz semanas e hoje é a primeira vez que tô me dispondo a abrir a ferida que você deixou. 

Fechei os olhos porque não conseguia te encarar. Vi sua mãe colocando a mão nas minhas costas pra tentar se desculpar por você, mas eu nem senti. Não dava pra sentir nada naquele quarto mofado, onde a decepção que emanava de mim ricocheteava em todas as quatro paredes antes de me atingir de novo. E de novo, e de novo. 

Vieram palavras, eu sei. Você disse meia dúzia de coisas, tentou inutilmente estabelecer uma conversação. Mas eu não ouvi. Pelo contrário, minha reação foi só virar as costas e sair, pra não passar mal na sua frente. Pra não te deixar me ver querendo morrer. 

Os dias que viriam a seguir seriam bastante angustiantes: eu pensaria no que tinha feito de errado pra te afastar assim e procuraria no nosso relacionamento de papel onde tinham sido os primeiros cortes. Sonhei muito com diálogos inexistentes, viu? Desenhei nosso romance com cheiro de flor, mas esqueci que flor traz espinho. 

E o que tem pra hoje (e pra todos os dias) é esse resto de monólogo inacabado, é esse relato sempre na primeira pessoa, sem participação da opinião de ninguém. Na falta de companhia, levo a ausência na veia, que, pra ser ingrata como só ela sabe, dói aos pouquinhos. Dói quando eu penso num futuro (num futuro nem tão distante, viu, não sei ser tão otimista assim) que nunca vai chegar a acontecer. Ou talvez até aconteça, só não com a gente. 

E o sangue corre pelas veias como a vida (es)corre pro ralo. Vão-se as horas e permanece apenas a minha carcaça necrosada banhada com vodka, porque o coração você levou. 

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