SORTE

Há pouco tempo, eu poderia ser considerada uma pessoa religiosa. Eu rezaria se me encontrasse na mesma situação em que estivera há pouco. Entretanto, em determinado ponto do percurso, aprendi que orações não transformam medo em tranquilidade, tampouco diminuem qualquer tipo de dor. Eu encarei a verdade e enfim descobri que Deus não tiraria de mim as mãos sujas tentando remover minhas roupas. Não seria Ele a figura heróica a salvar meu corpo de uma nova espécie de violação.
Eu não sabia seu nome, jamais havia visto seu rosto e me recusava a enxergar a tragédia prestes a acontecer. O homem que me forçava tão fortemente contra si mesmo era um completo desconhecido; apenas mais uma mente desequilibrada profundamente imersa dentro de uma sociedade cheia de psicopatas. Quanto a mim? Não passava do famoso clichê - a indefesa criança infeliz que terminara por se envolver com as pessoas erradas.
Era uma noite fria de Novembro. As ruas da periferia de Londres teimavam em manter-se imundas enquanto meu passo firme rompia o silêncio que a escuridão anunciava. O gorro vermelho que repousava fielmente acima dos meus fios de cabelo ordinariamente castanhos cobria parte dos meus olhos, cegando-me parcialmente. Contudo, devido à sua óbvia função (proteger-me do frio cortante), recusei-me a livrar-me dele. Talvez, se o tivesse retirado, meus constantes tropeços não me atrasariam tanto e eu não estaria no único lugar em que não deveria naquele instante.
Acelerei o ritmo de minha caminhada logo que adentrei meu cotidiano atalho - uma viela repugnante. Sem esforço ou pagamento algum, eu era capaz de assistir a um espetáculo peculiar: uma quantidade impressionante de ratos escalava as paredes, em uma demonstração única de posse do território. Já caminhara tantas vezes por aquele mesmo local que poderia me considerar parte da família roedora.
Confesso que não vi o que me atingiu. A culpa por tamanha desatenção já se encontrava impregnada em mim antes mesmo de o homem arrancar com fúria meu cachecol esvoaçante e arremessá-lo no chão. Lembro-me de ter pensado no preço da peça de roupa quando a vi se encontrar a uma poça (suspeito que de urina), e depois lamentado profundamente por ter usado um objeto tão caro naquele dia, como se aquele fosse o maior dos meus problemas. Quanta ingenuidade!
O homem puxou meu braço, e só aí eu pude perceber o quão forte ele era. Espremer-me-ia se assim fosse sua vontade, e eu mal teria a oportunidade de reagir. Não pude ver sua face. O único dado que tinha sido rápida o bastante para registrar era sua completa falta de cabelo.
Ele me guiou a uma cabana desocupada e mal cheirosa. Eu ainda estava desorientada. Temia pela minha vida, como qualquer pessoa cautelosa teria feito. Mal sabia eu que, em poucos minutos, estaria implorando para que meu agressor a tirasse.
Enquanto eu tentava libertar-me de seus braços, o homem me empurrou em direção ao solo e tirou uma lâmina afiada do bolso. Ele não precisaria daquilo se sua intenção fosse matar-me realmente.
“Se você for uma boa garota, há uma chance que você sobreviva”, informou. O quê? “Entendeu?”.
Eu tentei responder que sim, mas notei que o som havia me abandonado momentaneamente. A mudez não passava de mais um traço da minha covardia. Os outros estavam também presentes - o suor, os tremores, a urgência em fechar os olhos e fingir que tudo não passava de um terrível pesadelo.
Sem mais alternativas, eu somente assenti. Continuei balançando a cabeça freneticamente até que ele falou novamente:
“Você é só mais uma puta com quem faço isso”, continuou. Para completar, cuspiu sobre mim.
Eu havia feito algo. Eu tinha que ter feito algo que o atingira. Não era possível que tamanha crueldade viesse a causar prazer. Encolhi as pernas, tentando imaginar alguma saída. Encontrei uma que, infelizmente, não era boa o suficiente - conformismo.
Com pânico, percebi que o estuprador começava a desabotoar os botões de sua calça. Ele, então, retirou as camisetas que o aqueciam.
Não mais eu estava me sentindo prestes a congelar. Talvez fosse culpa das lágrimas quentes que cortavam meu rosto interminavelmente, talvez fosse o batimento desenfreado do meu coração. De qualquer maneira, a temperatura agora era insuportavelmente quente. O que eu insanamente desejava era voltar a momentos atrás, onde tudo sobre o que eu poderia reclamar era o frio.
Iniciou-se, em meio a meus pensamentos tumultuados, os segundos mais agonizantes da minha existência até então: o homem começou a andar até mim.
Eu tomei a única atitude que poderia: gritei (embora não saiba responder ao certo como recuperei a voz). Minha garganta doeu e o ar dos meus pulmões se perdeu em uma fração de segundo, mas eu produzi um som alto e agudo muito satisfatório.
“Cale a boca, sua desgraçada! Ninguém pode te escutar daqui”, eu pude ouvi-lo anunciando.
Ele estava errado. Eu fora ouvida, era óbvio. Mas nada viria me socorrer, porque simplesmente ninguém se importava. A indiferença era tão inglesa quanto o chá vespertino. Limitei-me a tremer em resposta.
O homem continuou a avançar em minha direção.
“Levante-se”, ele ordenou.
Eu queria obedecer, mas não pude. Minhas pernas bambas jamais me apoiariam e qualquer tentativa de colocar os pés no chão seria vã. Paralisada pelo pavor, eu permaneci parada, como mais uma tola imóvel presa na rede construída pelo terror absoluto que o agressor exalava.
Ele então, precipitou-se para frente, tomando a atitude que eu mais temia: veio me levantar à força. Tive, assim, uma visão privilegiada de sua aparência. O semblante estava rígido, o maxilar por inteiro contraído. Sua face rechonchuda era marcada por uma minúscula cicatriz logo acima dos lábios, em forma curvada. Por um segundo, perguntei-me se o ferimento fora causado por outra vítima. Se sim, perguntei-me se ela sobrevivera. Se a situação tivesse sido tão brutal como a minha, eu desejei que não. Ninguém merecia viver com medo. Por que motivo os seres humanos se gabavam tanto de sua liberdade se em becos escuros garotas eram detidas por lunáticos aprisionadores de almas?
Não fui levantada, na verdade. Até cheguei a cogitar a hipótese que todo o acontecimento era um devaneio onírico e que eu estava prestes a acordar. Mas, conhecendo os males da humanidade, era real. Pessoas matavam, feriam, mentiam e decepcionavam quem mais amavam todos os dias sem nenhuma causa substancial. O mundo era irônico; os valores sociais, distorcidos.
O homem, com seus olhos castanhos e sua pele branca, deitou-se sobre mim. E então, eu chorei. Solucei com desespero, perdi a respiração. Meus pulmões eram massacrados pelo estuprador por conta de seu peso, muito superior ao meu, mas esse era apenas parte do motivo da minha falta de fôlego. Senti desprezo absoluto quando meu corpo começou a ser tocado. Mãos ansiosas e incisivas começaram a percorrer minha barriga e levantaram minhas camisetas até que meios seios fossem descobertos.
Eu lutei. Tenho certeza que, até certo ponto, poderia ser considerado uma heroína. Ele teve de fazer uso da lâmina trazida para me imobilizar. Rasgou a lateral direita da minha cintura, fazendo-me sangrar. Ainda assim, eu insisti. Fiz força para continuar tentando tirá-lo de cima de mim. Mas, quando o homem enfim obteu êxito em desabotoar minha calça, desisti. Ao analisar os fatos atualmente, não me arrependo. Esforcei-me o quanto poderia. Os próximos dez minutos se estenderam em demasia. Era como se, a cada milésimo de tempo, forças celestes culpassem minha ingenuidade em andar sozinha por uma ruela escura.
Eu senti cada movimento tomado pelo homem. Queria poder dizer que me encontrava entorpecida demais para notar, mas meu entorpecimento desapareceu no momento em que a dor veio, resoluta e latejante. Ela substituiu meus sinais vitais - eu não mais me interessava em respirar ou manter meu coração batendo.
“Mate-me”, eu implorei. Não sei se o som foi alto o bastante para o agressor ouvir. “Por favor”, continuei a obsecrar.
Ele não respondeu. Estava, conforme eu poderia reparar, ocupado. Demorou para que se satisfizesse por completo. Varreu meu corpo com suas mãos violentas, explorando partes que ninguém nunca havia tocado antes.
Demorei mais de duas décadas para sentir total repulsa. Julgava-me muito esperta, conhecedora de todos os traços que formavam um bom caráter. No entanto, quando o asco veio, corroendo-me com seu veneno excruciante, todas as opiniões que eu mantinha secretas sob meu psicológico indecifrável desapareceram. Queria abandonar aquele corpo corrompido, repugnante, pútrido. Sempre quisera ser capaz de esquecer minhas mágoas de infância, mas conviveria com elas por mais cem anos se em troca pudesse apagar os últimos minutos. Entrei em transe. O pânico amorteceu cada célula minha.
Então, assim como veio, sem motivo, o estuprador se foi. Pareceu feliz com sua última conquista. Deixou-me ao chão, com as lembranças que se tornariam as mais eternizadas dentro de mim. Não estou bem certa, mas parece que o ouvi agradecer. A educação era notável.
Ainda estava sangrando. O corte na cintura não fora tão grande nem tão profundo, mas sangrava. Eu sentia o líquido escorrer lentamente, gota a gota. Antes da violação sexual que acabara de ocorrer, eu era adepta à filosofia que clamava que a dor física era capaz de distrair a psicológica. No momento, no entanto, eu provava que ela era mentira. Uma mente destruída é milhares de vezes pior do que um ferimento corporal. Talvez o agressor nem mesmo percebesse, mas o que ele fazia ia muito além do incômodo físico - tinha o poder de definhar os pensamentos.
Minha cabeça estava vazia. Eu esperava que passasse logo, a tortura era demais. Incrivelmente quente, ela queimava aos poucos. Por que eu? Das bilhões de pessoas presentes no universo, por que eu fora a escolhida para sentir tanta agonia? Por que , no meio de tantas mulheres, eu tivera que estar no lugar errado? Por que nascer se sua vida está destinada a um fracasso ininterrupto? Eu padecia hesitante. Intensidade... dor... abuso... culpa... sangue... Morte.
Lembro-me bem da última frase que perpassou por me cérebro tumultuado antes de falecer. Pedi a Deus que tivesse piedade sobre minha alma. Eu sabia que aquilo em nada adiantaria, mas me trazia maior comodidade acreditar que alguém além de mim mesma havia testemunhado a situação mais amedrontadora da minha vida. Aprendi uma lição naquele dia: não confie nos demais, mesmo que eles sejam próximos. Faz parte da natureza humana causar infelicidade, avassaladora como só ela é, mais cedo ou mais tarde. A bondade que existe no mundo é superficial, falsa, hipócrita. Na primeira oportunidade, toda fé anteriormente depositada em um indivíduo será traída. Tudo o que eu tive depois foi um golpe feliz do destino: nem todos tem a mesma sorte de morrer após serem abusados.

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